Há, durante o tempo todo um muito falso porém convincente clima de festividade, alegria, gozação e amizade. Mas como já disse, é tudo falso. Alguém se vira e recomenda assim para o playboy:
Então mano, chega ali na ligação, e dá um papo no amigo da B4 e pede o liquidificador emprestado, diz pra ele isso que tu me disse ae, se apresenta lá, explica o teu sofrimento. Aqui a visão é de fortalecimento, um fortalecendo o outro – afinal de contas, você acabou de chegar irmão, tá sofrendo... nós já estamos aqui há um tempão, estamos acostumados; tu tá mal alimentado, precisa de uma vitamina – falava com os lábios porém com as mãos modulava uma outra mensagem, como se nas mãos tivesse revólveres e estivesse se afogando. Creio que a mensagem das mãos era inversa à dos lábios.
- Então? Já é! Vou lá desenrolar! É uma vitamina, não é não? – Pergunta aleatoriamente para a primeira pessoa ao redor. Sorteia mais uma pessoa próxima, pergunta e se responde em voz mais baixa com um sorriso cartoon: Tá pensando que eu não sei desenrolar? Vou lá, mané.. é uma vitamina. - A partir de agora eu vou me cuidar, disse para si mesmo.
Aê amigo da B4! – Dá o papo! – Sabe o que acontece? [Passe o mouse aqui]
Não entendi amigo, pode falar de novo?
[O playboy repete tudo porém subindo aproximadamente oito lemgrubers de malandragem] Eu sou...
- Pode crer irmão, tô ligado na tua. Passa então aí irmão, qual é a sua visão?
[o silêncio reina na galeria: todos querem ouvir esse desenrolado, que uma vez observada a folha de estilo da apresentação, prometia]
- Pô irmão, como eu já disse, estou aqui nesse sofrimento, cadeia, certo? E o amigo aqu..
- Ei! Num fala no meu nome não ein bandido! Desenrola com o teu nome aí! - vem a recomendação, interferindo instantanemante na frase.
- e..e.então, certo? Eu queria saber se.. há-a-possibilidade-com-todo-o-respeito-no-brindão-de-o-amigo-enviar-o-liquidificador-na-ligação-para-o-amigo-que-está-no-sofrim - sendo interrompido por avalanche de gargalhadas de toda a espécie sonora.
- Num tô entendendo meu parceiro, fala mais uma vez! O que você falou? - Respondeu o amigo da B4, e todo o resto de todo o espaço da cadeia era preenchido completamente pelas gargalhadas de cerca de setecentos vagabundos prensados numa ‘cabeça de alfinete’. - PÔ IRMÃO, O LIQUIDIFICADOR, TÁ LIGADO? - E se reforçam e redobram as gargalhadas em toda a galeria - Liquidificador? Pra que, irmão? - E se esforçou bastante o playboy no meio de tanta risada, para explicar o que desejava. Isso se manteve por alguns minutos, até que houve um breve silêncio seguido da revelação da realidade:
- Coé bandido? Tá querendo tomar vitamina na cadeia? Isso aqui não é creche não vagabundo, isso aqui é cadeia! - Então o playboy enfim percebeu o quanto era ridícula sua requisição. Devo dizer que existem sim privilégios disponíveis na prisão, mas aquele ali não era o caso mesmo. O playboy se descontrola e começa a xingar a todos ao seu redor, até ser interrompido por um outro preso, de aparência fúnebre, que curiosamente não riu de nada nem um segundo. Esse é o verdadeiro frente da cela, que até então não havia genuinamente se apresentado.
- Primário, tu me viu te zoando? Como é que você agora está me xingando? Se liga na tua responsa que ninguém te trouxe pra cá enganado não rapaz, você veio com suas próprias pernas, e aqui a sua mãe não entra. Agora você vai conhecer o sistema penitenciário do estado do rio de janeiro, cuidado com o que você diz. – E retornou para sua leitura em tom de encerramento.
Quer saber que sabor tem o void?
- Beleza cupadi né? Boladão, um cinco sete... é nóis, é nois. Ae rapaziada, quem é o frente aqui da cadeia?
- TCHÁCK! A porta se fecha logo atrás da nuca do meliante, que dá aquela ciscadinha de susto, feito um pintinho.
- Silêncio....
- E aí, rapaziada? Quem é o frente do bagulho aqui, num tem que ter um frente?
- Pode falar irmão, dá o seu papo que eu te escuto - se ouve grave e baixo de lá de bem do escuro no fundo.
- En.. então cupadi. - E inspirando o ar, continuou..
EusoufulanodetaldomorrodonumseiaondetaligadorodeinoassaltoumcincoseteboladãobagulhodoidoamigofoibaleadotaligadocupadibAGUlhofreneticomascomo,estamosjuntosnessamissaodessavidabandidanehnaocupaditahligado?
- Alguns risos raros bem leves, trocas de olhares, e lá vem a pergunta: Num entendi mano, tem como falar de novo?
Lista Encadeada
Uma corda se extende por todo o corredor...
O percentual da lucidez humana se dá pelo quanto este sabe realmente a respeito do que acontecer ao seu redor, ninguém chega a cem por cento.
A morte, por ser simples, uma vez nela - você entende cem por cento.
Eu preciso reclassificar o mundo ao meu redor. Estou num lugar em que não sei situado onde; não sei o caminho por onde se sai daqui. Não sei nem exatamente por onde entrei; não sei nem se faz sol ou se está chuvendo. Preciso parar e pensar um pouco. Hum.. 73 d.p é em neves, isso eu tô ligado.
Legislação, comunicação e ....
A legislação eu já sei. São infinitas leis que se complementam e colidem como num acelerador de partículas. A melhor forma de cumprir a lei é fazendo silêncio absoluto. Se alguém disse alguma coisa, provavelmente violou alguma lei. É assim que funciona, basicamente.
Comunicação. Como isso funciona, e porque é importante entender? Uma coisa que ninguém entende é, como as pessoas dentro das prisões, sabem das coisas que ocorrem na rua muitas vezes antes mesmo dos jornais? A resposta para essa pergunta é: esqueça! O mecanismo é complexo demais.
...Uma corda se extende por todo o corredor. Seu nome é Tereza. Essa é a tereza-mãe. Ela é a coluna vertebral de um complexo sistema de transporte de objetos, mensagens e drogas entre as celas. Jamais rapunzel teria pensado em algo tão sujo e engenhoso quanto aquela série de nós mal feitos cadenciando remendos de lençol com rugas de enforcamentos voluntários e também forçados. Ela obedece apenas a comandos específicos, e é monitorada vinte e quatro horas em todos os seus trechos, em turnos que se revezam. Dentre vários motivos para isso (ela não pára o tempo todo mesmo), o mais importante consiste no fato de que, se o delegado chegar derrepente, e encontrá-la lá, todos os coletivos envolvidos sofrem pena de ficar 'no osso'.
Separei drogas de objetos porque realmente trata-se de um assunto completamente à parte, quando tratando-se de prisão. Ficar no osso também é um assunto completamente à parte.
Recursivamente os amarrados de tecido vão e vem, trazendo mensagens de paz e de guerra; alimentos e drogas, e seu nome é tereza, não tem braços, tronco nem pernas; apenas com cabelos e estórias, ela também tem algumas más memórias.
Memórias eternas.
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