Conectando os pontos II-III

Exatamente no ano em que Fernando Collor de Mello, o homem que tinha o planalto em seu nome, se candidatou a presidente, meus pais decidiram que teriam uma casa própria: Achei o máximo. Eu poderia levantar paredes no quintal, cavar o chão, fazer calabouços, túneis infinitos, láboratorios a lá Dexter e tudo mais que a imaginação de um pré-adolescente podia sonhar. Minha mãe pediu para ser demitida da liderança das arrumadeiras do hotel Rio Hoton Palace, e meu pai seguraria as pontas para pagar com pouco mais que seu salário inteiro, cada uma das parcelas da casa. Não eram muitas, mas eram pré-fixadas, crescentes e bem, mas eu disse bem gordas. A previsão seria de quebra em no máximo, dois meses.

Quando adentrei naquela rua por onde não era possível passar um caminhão, pois de um lado o abismo do rio, do outro, as casas sobre as calçadas com os postes quase no quintal e muito mato, tudo sinistro, sinistro mesmo, chorei.

Na primeira noite, lá estavamos sentados sobre a pilha dos móveis e demais itens da mudança, atirados em meio a muita água que escorria das paredes, sobretudo a parede do fundo, que era encostada no barranco do morro. A casa servia como uma espécie de 'casa de contenção'.

- Mãe, tava afim de ir na padaria comprar um pudim de pão.
- Agora é perigoso ir la fora, você ainda não conhece o lugar, amanhã vemos isso.

Bem, eu já conhecia essa história. Não havia mesmo um centavo sequer em casa.

Naquele cenário de terror, no quintal havia espaço para andar com meu skate. Um moreninho meio malandriado da vizinhança fez amizade com minha irmã. Acho que ele agora é meu cunhado. Parece que ele tem um certo nível de respeito aqui, o André.

- Fabim, você vai estudar lá no Nilo Peçanha né? É o seguinte... qualquer coisa que alguém disser para você, sem te conhecer, não interessa - mete a porrada sem falar nada. Qualquer coisa me avisa que eu te garanto.

Era o que eu precisava. Dois anos no Nilo Peçanha não me ensinaram nada que o Alfredo Backer não já tivesse ensinado antes. Foi bom que sobrou tempo... para que?

Do outro lado da rua, na praça do Zé Garoto, havia um fliperama. O famigerado Visão Diversões. Fliperama é tecnologia, achei! Mas também é lugar de marginal, ou pelo menos quando o Collor se candidatou, era. Bora pro fliper mané, tira a camisa da escola.


Mãe Diná falou que quem vai mudar o brasil será o presidente mais jovem da história.

Bem, não sei o que ela quiz dizer com isso, mas depois que o senhor Presidente assumiu e tomou certas atitudes, as impagáveis prestações da casa viraram ficha de fliperama.

- Deixa eu jogar essa fase ae, neguim...
- Deixa eu ver o seu chinelo... dá em mim, mané...
- Me empresta duzentos cruzeiros ae, mané...
- Você é da onde?

Eu sempre tinha fichas de fliperama, e pra ficar melhor, o André começou a trabalhar lá. Sempre pintavam uns muleques mais modernos, mais velozes no falar, mais, sei lá.. eles davam inveja só pelo jeito deles.. andavam em bando.. sempre estavam rindo... eram do colégio são gonçalo...

- Mãe, quero estudar no colégio São Gonçalo.

Conectando os pontos I-III

Certa vez ouví uma estatística dando conta de que passamos 70% do nosso tempo pensando em coisas que estão no passado. Havendo tempo de sobra para pensar - já que ficar falando não é bom negócio - muito do que se ocupa da mente é, realmente, passado; já que não há perspectiva de futuro, não importa o delito.

Minha memória dos 2 anos de idade até aqui tem pontos que marcaram, e por isso não são esquecidos. O primeiro grande marco, acho que foi o Adino Xavier:

Eu cumpri o jardim de infância na escolinha do Mickey, que era particular porém tinha uma tia que me batia muito. Certa vez, vi o chamado de um filme na tv e não hesitei em comentar com uma coleguinha: "Você viu o ataque das piranhas?" - Tiááááá, ele aqui xingou: Me chamou de piranha! E toma-lhe castigo.. de joelhos atrás da porta.. era assim mesmo?

- Mãe, não quero mais ir pra escola. [toma-lhe choro]... porque a tia me bate.
- Tudo bem, onde você quer estudar? No Adino Xavier, onde estuda Chico Júnior(coleguinha vizinho).

Colégio público. Roda de banda, garrafão, palitinho, pau-na-cabrita, pular carniça, gangue, vamo que vamo. A primeira vez que cruzei o pátio com meu pão de creme em uma mão - e a laranjinha na outra, vi o céu abaixo dos meus pés. Passei no meio da roda e não sabia nem o que era aquilo.. alguém veio correndo de longe e me passou uma pernada de modo que rodopiei e caí de cabeça perpendicular ao chão, com laranjinha e pão de creme. A tia na secretaria passou merthiolate e me tacou de volta na sala de aula. Homem não chora - dizia ela com cara de má.

Alfabetização: Cada aluno leia uma palavra no jornal, recorte e traga aqui pra tia.

Fabinho, o que está escrito aqui? Me perguntou um coleguinha - Félix Pacheco, respondi.

Professora, olha aqui: Félics, féliques.

Que lindo, venha cá! Professora Maria Lúcia, veja, o Bruno já lê palavras com xis! Que inteligente!

Não tenho recordação de elogio de professores no Adino Xavier. Mãe, quero estudar no Alfredo Backer.

2ª, 3ª e 4ª séries... lá participei da fundação de diversos grupos terroristas sem fundamento. Lá eu dominava, era mentor de diversos atentados, era até certo nível (bem baixo), respeitado - mas no bairro onde eu morava meu apelido era: Fabinho, o lerdo.

Isso tinha diversos motivos. Basicamente eu não tinha um irmão, não tinha quem me defendesse, e vivia num meio onde eu era um dos menores. Os outros da mesma faixa que eu tinham irmãos mais velhos e outros irmãos da mesma idade, de modo que se fortaleciam entre si, eu porém, era definitivamente em todos os aspectos o mais fraco. Político, social, cultural e animal. Apenas para esclarecer, o aspecto animal é aquele que fala da lei do mais forte, os demais já são conhecidos.

Um outro motivo igualmente forte é que eu vivia em outro mundo. Raramente conseguia me sintonizar com os papos da galera e frequentemente falava algo incompreensível ou ainda, merda.

E quem fala merda, é pau-na-cabrita.

Bem, contudo aquele não era o fim do mundo. Ao menos, ali a índole tendia bem de leve para o bem. E eu já tinha meu destaque garatido na escola, não precisava taaanto assim de respeito no bairro. Tranquilo. Fabinho Lerdo aqui, Fuhrer ali..