O Pêndulo de Newton

De tudo quanto é dito, todos prestam conta. Ninguém esquece nenhum detalhe de nada do que todos dizem, nem tampouco deixa de ouvir, por mais baixo e incompreensível que seja.

Numa noite onde tudo parecia tão tranquilo, apenas o som do radinho de pilha na estação evangélica churriava ora canções, outrora orações, sempre em paralelo a pelo menos 128 outros canais de áudio contendo espirros, tosses, sacos plásticos sendo amassados, outros rádios em outras estações, etc, etc.

Sim, numa dessas noites barulhentas porém muito tranquila - que de forma inútil tentei descrever - dentre os múltiplos ruídos mixados no interior daquele escuro recinto, alguns fonemas puderam ser compilados de forma a assumir significado:

".,.e,.w..aq.ui..kí..,ew.fe.s.ó...tem..s.s...va;;;ss..lão...".

Já com os ouvidos bem treinados, identifiquei a frase claramente mas carecia de confirmação, perguntei, sem saber que não era eu o único a ter percebido:

- Como é esse negócio de vacilão ae?
- [outro1] É, eu ouvi também. Que papo é esse de que aqui só tem vacilão, Playboy?
- [outro2] Eu tava dali só ouvindo esse palhaço. Como é que você diz que aqui só tem vacilão assim, mermão? Você é o que? Espertão? E geral aqui é otário, é isso?
- [outro3, outro1, eu, outro4, outro5, todos juntos falando cada um uma parte formando uma frase...] Mermão! Se apresenta no miolo e se explica ae! É, desde o começo! Conta pra nóis aí o que você está pensando. Isso, o que você acha ao nosso respeito. Anda maluco, fala ae!

O resumo disso são horas e horas de discussão acalorada até que o meliante se sentasse bem no centro do miolo para receber uma sabatina de garrafadas do jeito que o pai da física gosta: com força.


Uma garrafa pet cheia d'água e uma espécie de corda feita de tiras de lençol (seu nome é Tereza). Cada um dos internos da cela tem o dever de arremeçar a garrafa contra as costas do infrator através da Tereza, sempre respeitando o princípio do pêndulo.

Numa sociedade onde o prêmio máximo é a liberdade, e esta por sua vez só se conquista com a moeda do tempo, fazer o tempo passar é uma arte. E nada é mais eficiente nessa arte de rolar o tempo por sobre as montanhas que a confusão. Na cadeia, todo dia tem confusão para quem quiser, e também, quem não quiser. A confusão leva o tempo com ela, mas em seu lugar deixa uma silenciosa nota musical de encerramento: a punição. T u d o s e m p r e a c a b a, c o m a l g u é m s e n d o p u n i d o.

É quando no fim da orquestra, depois de atirar a sua pedra, cada um se recolhe e pensa, à luz deste mesmo silêncio: Quando será, então, a minha vez?


No Pêndulo de Newton, nem todos batem, mas todos certamente apanham.

Bosonização dos Férmions


Até a grade da cela chegava um fio de cobre por onde passava eletricidade na tensão média de 110 volts. A partir dali, toda a fiação do ambiente era feita através de finas tiras de alumínio de quentinha, que ligadas umas as outras iam se distribuindo coladas às paredes, formando com isso o esquema elétrico que alimentava as lâmpadas, rádios fm, televisor (era permitido haver um por cela, sem carcaça, somente o tubo de imagem e o chassis), ventiladores e demais ‘gadgets’ dos detentos.

Pausa para reflexão
Quando eu disse gadget, você não pensou em Smartphone/Ipod/Ipad/Iphone/Touch/Galaxy/PSP/PS3/Nintendo DS/XBOX não, pensou?


Na verdade, não há muita variedade de materiais dentro de uma cela. O regimento carcerário (que não é o regimento da massa) restringe bastante os objetos que podem entrar na cela, com o intuito de previnir mortes, rebeliões e fuga. Os objetos permitidos são basicamente: pilhas aaa, pasta de dentes em tubos de plástico, sabonetes, desodorantes roll-on, analgésicos, lâmpadas, barbeadores, canetas, tecido e papel diverso. A partir dessas primitivas, é formado todo o universo de utensílios possíveis.

Então, vamos falar do interruptor de luz.

A primeira vez que fui solicitado a acender uma lâmpada em específico, ao olhar para a mesma encontrei a seguinte cena: um fio de alumínio de quentinha enrolado em volta da rosca, cuja solda no fundo era ligeiramente levantada para que fosse possível prender o segundo fio, tudo isso pendurado no teto de maneira precária e só. É bobagem dizer que não havia disponível alicate, chave de fenda, multímetro, luva ou qualquer forma mais elaborada de ferramenta, mas as minhas mãos estavam ali, os fios separados esperando para serem unidos, a lâmpada apagada e o colega de cara feia me olhando como quem diz: “vai acender essa porra ou não vai?”.

Pensei por mais um segundo e conclui: Aqui só tem bandido, e como esse adjetivo sugere dureza, o normal deve ser acender a luz no modo hardcore mesmo, no melhor do estilo homem elétrico, na porrada. Toma! Grrrraaaarrrrrgh! Tásck! Acendi.

Depois de algum tempo, estando já habituado às descargas elétricas (descobri que o negócio é tascar-lhe a mão no fio com raiva mesmo, que assim a eletricidade te respeita), me foi apresentado o projeto do interruptor de cadeia.

Este consistia em cortar a parte superior do tubo de pasta de dentes (do ponto de maior diâmetro para cima), posicionar um pequeno pedaço de alumínio de quentinha no fundo da tampinha e fazer dois furos na extremidade da rosca do tubo, prendendo nestes os fios que deveriam acender a lâmpada, sem que isto impedisse de rosquear a tampinha com seu alumínio ao fundo. O resultado desta maravilha tecnológica era que, ao rosquear a tampinha até o máximo, o alumínio tocava ambos os fios simultâneamente, acendendo a lâmpada. Ao desrosquear, é tolice dizer o que acontece.

Na medida em que o férmion de merda recém chegado se socializa e aprende, vai sofrendo o processo de refermionização, até que venha a se tornar, enfim, um Bóson de Higgs.

Para entender como isso tudo acontece na teoria, clique aqui.

Leis de Kepler

Logo no primeiro dia, é dado a conhecer ao interno as leis que regem o comportamento da partícula quando esta atravessa um meio mais denso. São as leis da conservação física.

Essa espécie de script de configuração de rede com sua lista de direitos e deveres é tão extensa, que não existe impressa em nenhum lugar, senão na paranóia e na mente de quem chega. É como a experiência da origem dos paradigmas, já não são mais regras, mas infinitos paradigmas que se conectam em forma de lista encadeada e é possível que até colidam em algum ponto.

Aqueles pouco mais de 4 metros paralelepipedamente cúbicos eram divididos em miolo, coletivo e boi, conforme a ilustração:


O boi era o lugar onde no chão havia um pequeno buraco, na parede um registro e no teto um cano de onde a água pingava diretamente no buraco. Era nesse buraco que o sujeito deveria se concentrar caso quisesse manter o ciclo dos alimentos que ingere, momento esse que seria requintado pelo gotejar contínuo sobre a cabeça.

Uma das regras de comportamento consistia em proibir qualquer pessoa de chamar aquele recinto delimitado por uma cortina de plástico pelo nome de banheiro. Para dizer a verdade, a maioria das regras se importavam mais com o que você vai dizer do que propriamente com que você vai fazer - mesmo porque no meio de tanta gente com tão pouco espaço, o que mais se faz é falar - já que não dá para se mexer muito.

Nesse tal regime que já se pode respirar - mas respire devagar - quem pensa que cadeia é lugar para rebeldes está muito enganado. Num completo declínio da auto-estima e num total desequilíbrio de forças, a mente precisa se manter no prumo. É como apostar corrida com uma colher na boca carregando um ovo, porém perneta na cordabambalevandoporradanacaraecegosurdoemudo. Será que esquecí alguma coisa?

Todos deslizam algum momento. Vou relatar apenas o meu primeiro deslize.

Esmerando-se ao máximo de todo o rigor da vigilância e disciplina, acolhí o pedido de um companheiro que sugeria a abertura do meu último pacote de cream-cracker. É válido salientar a lei que diz que, tudo quanto se divide, se divide por todos.

Pronunciar cream-cracker da forma correta/eu nunca perguntei/mas provavelmente também constituiria algum tipo de violação de morte. Atendi o pedido mas achei prudente acrescentar que seria bom guardarmos a metade para mais tarde, ou talvez, o dia seguinte.

Recordar-se desse momento me afugenta a força dos dedos porque, de fato se eu pudesse voltar no tempo eu devovaria aquelas palavras de volta e não as permitiria embarcar em gases, fezes, gemido nem coisa outra alguma serviria de transporte para que saísse do meu pensamento. De imediato, o sujeito mais bizarro e cascudo disponível naquela vernissage de bandidos devolve o pacote de biscoitos instantâneamente, justificando com a feiura de um rosto que nos meus dias mais amargos não conhecí: "Não é sem miséria? Então toma essa porra". E cuspiu do biscoito o que sobrara nos lábios.

O dia seguinte era dia de visita, dia em que entra a "sucata", ou melhor, as coisas que os parentes trazem aos presos.

Em torno de um sol quadrado, miséria é contra a lei.

Massa Crítica

Uma vez aberta aquela última portinha cujas barras pareciam tantas, tantas vezes mais largas que o espaço quase despresível entre elas, era pôr o pé do lado de dentro, ouvir novamente aquele estalo estridente logo atrás da nuca e não ter noção alguma de quando acordaria daquele pesadelo.

Lá estava eu novamente no palco, mas tão logo eu desse meu primeiro show, o público não iria embora. O público agora era minha família, e o palco, minha cama.



No mesmo palmo quadrado onde pus meus pés no interior daquele ambiente, ali cumprimentei a malandragem com todas as mãos e dedos de que dispunha e me agachei, tentando não ocupar mais que isso: dois palmos quadrados. Pudera! Não havia muito mais disponível naquela espécie de massa crítica da bandidagem, aguardando o projétil da ignição atômica.

Depois das devidas explicações a quem interessar pudesse, ali mesmo permaneci, ignóbil porém bem chinês, japonês, qualquer cidade desenhada na cabeça de um alfinete, assim. Mas, é foda. Não demorou muito para que eu esboçasse algum som com os lábios, e foi detectado instantaneamente.

- Hã? Aê rapaziada! Silêncio! O amigo aqui vai cantar um rap!

Bem.. me deram o microfone e lógico, deu merda - bom sentido. Eles ouviram o que queriam e pude relaxar a musculatura vislumbrando que não seria eu a detonar essa ogiva que ali esperava sua reação em cadeia; passei a fazer parte do bonde.

Bóson de Higgs

Para entrar no corredor onde situavam-se as celas, o carcereiro não poupava a ênfase dos seus ruídos. Não era suficiente abrir os cadeados e os ferrolhos, era preciso emitir os agudos das ferragens batendo, indicando que chegava carne fresca. Durante muito tempo isso foi para mim como a oitava sinfonia, nos moldes da tortura vista no filme Laranja Mecânica.

À direita situavam-se as celas, onde se podia notar nas partes não descascadas da pintura da parede desenhos infantis, extamente como a parede do pátio de qualquer creche abandonada. Por poucos segundos cheguei a pensar se aquele lugar não teria sido um colégio no passado, mas logo me recordei que ali havia sido carceragem do DOI CODI. Não havia nada infantil alí no presente, tampouco no passado.

Ao pisar no corredor, na minha direção em sentido oposto uma avalanche de sons que incluíam palavras, ruídos de canecas e grades se batendo. Todos gritavam: "Vai morrer!". Não existe a palavra medo sem a palavra morte, e vice-versa, de maneira que junto com aquele som veio também o medo, me fazendo tremer em harmonia com as paredes e as grades. Era preciso reagir aquilo tudo, e minha única ferramenta naqueles pouco mais de 15 passos através do corredor até aquela que seria a minha casa por eternos 30 dias era o raciocínio, que logo me perguntou: "Se todos que entram vão morrer, como ainda há gente viva gritando ai dentro?". São todos bósons de higgs, diminuem a velocidade ao atravessarem meios mais densos, mas sua existência como matéria não pode ser comprovada.

Passou a tremedeira, o medo e até o barulho cessou.

Será que havia mesmo barulho?