Leis de Kepler

Logo no primeiro dia, é dado a conhecer ao interno as leis que regem o comportamento da partícula quando esta atravessa um meio mais denso. São as leis da conservação física.

Essa espécie de script de configuração de rede com sua lista de direitos e deveres é tão extensa, que não existe impressa em nenhum lugar, senão na paranóia e na mente de quem chega. É como a experiência da origem dos paradigmas, já não são mais regras, mas infinitos paradigmas que se conectam em forma de lista encadeada e é possível que até colidam em algum ponto.

Aqueles pouco mais de 4 metros paralelepipedamente cúbicos eram divididos em miolo, coletivo e boi, conforme a ilustração:


O boi era o lugar onde no chão havia um pequeno buraco, na parede um registro e no teto um cano de onde a água pingava diretamente no buraco. Era nesse buraco que o sujeito deveria se concentrar caso quisesse manter o ciclo dos alimentos que ingere, momento esse que seria requintado pelo gotejar contínuo sobre a cabeça.

Uma das regras de comportamento consistia em proibir qualquer pessoa de chamar aquele recinto delimitado por uma cortina de plástico pelo nome de banheiro. Para dizer a verdade, a maioria das regras se importavam mais com o que você vai dizer do que propriamente com que você vai fazer - mesmo porque no meio de tanta gente com tão pouco espaço, o que mais se faz é falar - já que não dá para se mexer muito.

Nesse tal regime que já se pode respirar - mas respire devagar - quem pensa que cadeia é lugar para rebeldes está muito enganado. Num completo declínio da auto-estima e num total desequilíbrio de forças, a mente precisa se manter no prumo. É como apostar corrida com uma colher na boca carregando um ovo, porém perneta na cordabambalevandoporradanacaraecegosurdoemudo. Será que esquecí alguma coisa?

Todos deslizam algum momento. Vou relatar apenas o meu primeiro deslize.

Esmerando-se ao máximo de todo o rigor da vigilância e disciplina, acolhí o pedido de um companheiro que sugeria a abertura do meu último pacote de cream-cracker. É válido salientar a lei que diz que, tudo quanto se divide, se divide por todos.

Pronunciar cream-cracker da forma correta/eu nunca perguntei/mas provavelmente também constituiria algum tipo de violação de morte. Atendi o pedido mas achei prudente acrescentar que seria bom guardarmos a metade para mais tarde, ou talvez, o dia seguinte.

Recordar-se desse momento me afugenta a força dos dedos porque, de fato se eu pudesse voltar no tempo eu devovaria aquelas palavras de volta e não as permitiria embarcar em gases, fezes, gemido nem coisa outra alguma serviria de transporte para que saísse do meu pensamento. De imediato, o sujeito mais bizarro e cascudo disponível naquela vernissage de bandidos devolve o pacote de biscoitos instantâneamente, justificando com a feiura de um rosto que nos meus dias mais amargos não conhecí: "Não é sem miséria? Então toma essa porra". E cuspiu do biscoito o que sobrara nos lábios.

O dia seguinte era dia de visita, dia em que entra a "sucata", ou melhor, as coisas que os parentes trazem aos presos.

Em torno de um sol quadrado, miséria é contra a lei.

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